sábado, 1 de maio de 2010

Verdades inquestionadas questionáveis I: a estagnação da Europa

É muito comum vermos jornais de economia e business dizendo que, nos últimos 30 anos, a economia da Europa Ocidental Continental encontra-se estagnada em comparação com as economias dos países de língua inglesa, e que os culpados pela suposta estagnação seriam a exessiva regulação do mercado de trabalho, o Estado de Bem Estar Social generoso demais e o imposto de renda muito alto para os ricos. Os defensores desta visão costumam dizer que a Europa Ocidental Continental deveria fazer reformas inspiradas no mundo anglo-saxão para incentivar mais a competição e o trabalho.
Seria possível utilizar muitas linhas para dizer que há outros fatores que explicam o maior crescimento das economias de países de língua inglesa, principalmente dos EUA, em comparação com alguns países europeus continentais, e também seria possível facilmente argumentar que o diferencial de crescimento do produto não implica diferencial de crescimento de qualidade de vida.
Mas para contrapor o argumento de que a Europa não pode manter o modelo do Estado Social e da economia social de mercado, há uma evidência ainda mais fácil de ser encontrada: o maior crescimento da economia do mundo anglo-saxão, principalmente dos EUA, não é tão relevante assim. Basta observar dados facilmente disponíveis.
A tabela a seguir mostra a relação entre o PIB per capita de cada um dos países que compuseram a União Européia em seu início e o PIB per capita dos EUA, em 1980 e em 2009. O gráfico mostra a evolução ano a ano desta relação para alguns países selecionados.
Lembrando que entre 1980 e 2009, o PIB per capita dos EUA cresceu aproximadamente 2% ao ano.

Relação PIB per capita do país obervado/PIB per capita dos EUA
Fonte: IMF World Economic Outlook Database

Evolução da relação PIB per capita do país selecionado/PIB per capita dos EUA

Fonte: IMF World Economic Outlook Database

É possível observar pela tabela que o aumento da distância com o PIB per capita dos EUA(chamado de falling-behind) é um fenômeno restrito aos três grandes países da Europa Ocidental Continental: Alemanha, França e Itália. E mesmo na Alemanha, cuja relação caiu apenas sete pontos percentuais em três décadas, o falling-behind não é tão acentuado. Sete pontos podem ser revertidos em muito menos do que trinta anos e já estavam sendo revertidos, lentamente, entre 2006 e 2008. Porém a Alemanha foi muito mais duramente atingida pela crise do que os EUA (ver gráfico). E isto não tem a ver com o seguro-desemprego ou o maior gasto social, até porque o crescimento do desemprego nos EUA foi maior. A economia da Alemanha caiu mais que a dos Estados Unidos, porque é mais manufatureira e portanto, mais exposta ao comércio internacional.
Se forem observados os pequenos países europeus continentais, verifica-se uma quase estável relação, nas últimas três décadas, entre o PIB per capita local e o PIB per capita dos EUA.
O gráfico mostra que, tirando a Itália, não há uma tendência de longo prazo irreversível de falling-behind. O distanciamento entre o PIB per capita da França e da Alemanha em relação ao dos EUA foi um acontecimento praticamente restrito todo ele aos anos 90. Na década de 1980 e de 2000, os crescimentos foram razoavelmente semelhantes.
Situação diferente ocorreu com a Áustria, a Holanda e os países escandinavos, que tiveram estagnação relativa somente na década de 1980 (tendo sido a Finlândia, além disso, atingida pelo fim da URSS). Nas décadas de 1990 e 2000, esses países tiveram desempenho até melhor que os EUA.
Portugal e Espanha tiveram ótimo desempenho econômico entre 1986 e 2000, tendo crescimento do PIB per capita bem superior ao dos EUA no período mencionado.
O Reino Unido é um integrante (e fundador) do mundo anglo-saxão e seu bom desempenho econômico nas últimas três décadas poderia ser visto como prova de sucesso do modelo anglo-saxão. Mas a verdade é que o Reino Unido não é um estado dos EUA. Seu modelo social e econômico é um intermediário entre o norte-americano e o europeu continental.
Agora vamos voltar um pouco à discussão mencionada no início do texto: a relação entre PIB per capita e qualidade de vida.
Alguém poderia contra-argumentar o que foi dito até então, dizendo que a tendência mais natural prevista pelas leis econômicas seria a de convergência entre o PIB per capita da Europa Ocidental e o dos EUA, que estava ocorrendo de 1950 a 1980, e que a estagnação na faixa dos 70 ou 80% ocorrida deste então seria prova de fraqueza do modelo europeu continental.
Mas a verdade é que a diferença entre o PIB per capita dos EUA e o da Europa Ocidental é em sua maior parte explicada pelo maior número de horas trabalhadas nos EUA: os norte-americanos começam a trabalhar mais cedo, trabalham mais horas por semana, têm férias mais curtas e se aposentam mais tarde. A diferença de produtividade por hora trabalhada do norte-americano e do europeu ocidental é bastante pequena. Ou seja, o PIB per capita superior dos EUA não implica qualidade de vida superior. Trata-se de uma escolha social entre consumo e lazer. Os norte americanos preferem ter mais consumo, os europeus ocidentais preferem ter mais lazer. Consumo e lazer são indicadores indispensáveis do nível de qualidade de vida. E o PIB só mede consumo.
Mesmo o economista Robert Gordon, que concorda com a tese de que o modelo social europeu inibe o crescimento econômico, mostra neste paper que grande parte do diferencial de PIB per capita do Atlântico Norte tem a ver com o número de horas trabalhadas. A diferença de produtividade da hora trabalhada, embora crescente desde 1995, tem importância menor.

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