domingo, 20 de março de 2011

O que a propriedade intelectual tem de anti-liberal

A defesa de direitos de propriedade de bens tangíveis e escassos é um consenso entre os defensores do liberalismo. O mesmo não se aplica para bens intangíveis e não escassos, como as idéias. A propriedade intelectual, que é um caso de propriedade de bens intangíveis e não escassos, é um tema que divide os defensores do liberalismo.
Mesmo sem a polêmica da propriedade intelectual, o liberalismo já é dividido. Os defensores de um liberalismo mais radical consideram que a única função do Estado é a de garantir os direitos naturais: vida, liberdade, segurança, igualdade perante à lei e propriedade. Para esta versão de liberalismo, maximização de renda, riqueza, utilidade ou bem-estar não é papel do Estado. Portanto, não é aceita qualquer ação do Estado voltada para a maximização, ainda que seja comprovado que tal ação seria eficiente neste objetivo. Os defensores de um liberalismo mais moderado aceitam que a eficiência econômica, ou seja, a maximização de renda, riqueza, utilidade ou bem-estar, seja um objetivo a ser perseguido pelo Estado. Mas eles são liberais na medida em que consideram que a melhor maneira com a qual o Estado deve agir para promover a eficiência econômica é agir o mínimo possível. Ainda assim, esta vertente do liberalismo aceita alguma forma de atuação do Estado voltada para a maximização. A divisão entre estas duas vertentes de liberalismo não é fácil de ser percebida, porque aqueles que consideram que a maximização não justifica ativismo do Estado também consideram que o ativismo do Estado quase sempre não promove a maximização.
Liberais como Tom Palmer e Stephan Kinsella, que se opõem ao reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual, são defensores da forma mais radical de liberalismo (são conhecidos como libertários porque, nos EUA, liberal tem outro significado). Mesmo se alguém provar que as patentes estimulariam a inovação e os direitos autorais estimulariam a produção artística e intelectual, estes autores ainda seriam contra a propriedade intelectual. Kinsella diz claramente que o objetivo das leis não é a maximização e sim a justiça. Ainda assim, Palmer e Kinsella discutem a relação entre propriedade intelectual e maximização, argumentando que esta relação não é clara e que a propriedade intelectual pode causar ineficiências econômicas. Kinsella considera que as patentes desviam recursos das empresas de atividades de P&D para despesas burocráticas de registro, e que o monopólio de 20 anos possibilitado por uma patente causa acomodação nas empresas. Outra objeção apontada às patentes é a de que elas criam incentivos artificiais para a pesquisa prática em detrimento da pesquisa teórica, e para os estágios iniciais da pesquisa prática em detrimento dos estágios finais. Em relação aos ganhos ou perdas econômicas decorrentes da propriedade intelectual, não há discussão mais aprofundada sobre direitos autorais, porque estes estão mais relacionados com produção artística intelectual do que diretamente com progresso técnico, como é o caso das patentes. Mesmo assim, recentemente, um historiador alemão defendeu que a demora de seu país em reconhecer os direitos autorais no século XIX facilitou a livre circulação de idéias, o barateamento do conhecimento, e consequentemente, o desenvolvimento econômico.
A discussão sobre o impacto econômico da propriedade intelectual é apenas adicional. O foco principal da argumentação de Kinsella e Palmer é o de que a propriedade intelectual, ao contrário da propriedade de bens tangíveis, não é um direito natural. Para estes autores, os direitos de propriedade intelectual são garantidos pelo Estado através da violação parcial dos direitos de propriedade de bens tangíveis. Ao defender os direitos autorais, o Estado estaria limitando a maneira com a qual os indivíduos pudessem utilizar seus próprios computadores, CDs graváveis, papel, tinta, máquina copiadora, voz e instrumentos musicais. Ao defender as patentes, o Estado estaria limitando a maneira com a qual os indivíduos pudessem utilizar suas próprias terras, máquinas e matérias-primas.
Alguém poderia contra-argumentar perguntando “mas se eu aceitar este raciocínio, estarei eu aceitando também que proibir assaltar é restringir o uso do próprio revólver?”. Não. Quem rouba um automóvel, que é um bem tangível e escasso, impede o sujeito roubado, que é o legítimo proprietário, de usufruir o bem. Quem copia um livro não impede o autor ou a editora de usufruir determinado bem, nem impede que proprietários de exemplares do livro continuem possuindo aquele exemplar.
Para Kinsella e Palmer, os direitos de propriedade existem para evitar conflitos sobre o uso de bens escassos, e, portanto, somente bens escassos deveriam ser objetos de direitos de propriedade. Bens não escassos não geram conflito sobre seu uso. A extensão de direitos de propriedade a bens não escassos, além de violar outros direitos de propriedade, criaria escassez artificial desses bens.
Os autores refutam a noção de que os direitos de propriedade intelectual seriam justos porque as pessoas teriam o direito à propriedade do fruto do próprio trabalho. Para Kinsella, trabalho não é fonte de direitos de propriedade. O exemplo utilizado para defender esta afirmação foi o de um indivíduo que forjou uma espada. A espada é propriedade deste indivíduo porque o ferro utilizado era de propriedade deste indivíduo. Se este indivíduo tivesse forjado uma espada utilizando o ferro alheio, este indivíduo não seria proprietário da espada. Ele seria simplesmente um ladrão.
As formas de propriedade intelectual que mais geram polêmica são as patentes e os direitos autorais. Palmer pouco discute as trademarks por considerá-las mais defensáveis. Kinsella também aceita as trademarks, mas de forma diferente daquela atualmente conhecida. Ele diz que uma lanchonete que utiliza clandestinamente a marca de uma rede conhecida, deve ser processada por falsidade, mas pelos consumidores e não pela rede conhecida.
Mesmo para quem, ao contrário dos autores mencionados, não defende o liberalismo, é interessante ler estes textos. É possível concordar com a afirmação de que os direitos de propriedade intelectual não são direitos naturais, mas discordar da afirmação de que o único papel do Estado é garantir os direitos naturais. As garantia das patentes e dos direitos autorais seriam uma forma de atuação do Estado para fomentar o progresso técnico e cultural, e o desenvolvimento, assim como outras formas de atuação, como as isenções tributárias, o crédito subsidiado, a preferência de compras governamentais pelo produto nacional e o protecionismo temporário. Todas estas políticas deveriam ter seus custos e benefícios avaliados, sem preconceitos que definem a priori as patentes e os direitos autorais como políticas boas e as demais políticas mencionadas como políticas ruins. Preconceito defendido pela OMC, cujas rodadas procuram defender rigidamente a propriedade intelectual e coibir rigidamente as outras políticas. A discussão proposta pelos liberais anti-propriedade intelectual também é útil para evidenciar as fraquezas argumentativas dos liberais pró-propriedade intelectual.
Infelizmente, os artigos discutidos aqui são pouco conhecidos do grande público. Por enquanto, as críticas de direita à propriedade intelectual são restritas às discussões acadêmicas. As críticas à propriedade intelectual mais conhecidas pelo grande público são as críticas de esquerda. Muitos sites que permitem a divulgação gratuita de seus textos dizem adotar a política do copyleft, em um trocadilho com o copyright. Os músicos mais entusiastas do download livre estão, em grande maioria, à esquerda dos músicos que têm medo do MP3. E uma charge bastante conhecida diz tudo: “when you pirate MP3, you are downloading communism”.
A única crítica de direita aos direitos de propriedade intelectual mais conhecida do grande público é aquela feita pelo desenho libertário South Park. Em um episódio, um dos quatro meninos (não lembro qual) foi preso por fazer download de música. Para sensibilizar o menino, a polícia levou-o à mansão de Lars Ulrich, baterista do Metallica, e falou: “Você está vendo, há três carros de luxo na garagem. Com essa onda de download intelectual, vai haver apenas dois carros de luxo. Olha a maldade que vocês estão fazendo com os artistas”.
Por fim, concordando ou não com as leis que garantem direitos de propriedade intelectual, elas devem ser respeitadas. Quem não concorda com essas leis, deve tentar modificá-las, e não comprar DVD pirata. Agora, concordando ou não com os direitos de propriedade intelectual, não é muito difícil achar ridículos aqueles anúncios sensacionalistas divulgados na televisão e no cinema que comparam a compra de um DVD pirata com o roubo de um bem tangível.

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