Os principais nomes da condução da política macroeconômica do
primeiro mandato de Lula eram o Ministro da Fazenda Antônio Palocci, seu
secretário do Tesouro Joaquim Levy e o presidente do Banco Central Henrique
Meirelles. Eles conduziram uma política mais criticada pela esquerda do que
pela direita. Criticada não apenas pelo então recém criado PSOL, como também
por integrantes do próprio PT e organizações da sociedade civil vinculadas ao
PT. As ideias que nortearam esta política voltaram ao governo com o retorno de
Joaquim Levy ao governo, agora como Ministro. Por isso esta discussão é
importante. Então, havia alternativa à política macroeconômica do primeiro
mandato do Lula?
Resposta muito simples: sim, mas a alternativa seria inevitavelmente
mais antipopular do que a que foi implementada.
A política macroeconômica de Palocci/Levy/Meirelles foi a manutenção do
tripé criado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, que consistia em
regime de metas de inflação, câmbio flutuante e geração de superávits primários.
Quando Lula assumiu em janeiro de 2003, a inflação anual estava em 12%. O dólar
estava valendo quase quatro reais. Quem falar que esses eventos que ocorreram
antes do Lula ser presidente ocorreram por culpa do Lula leva tabefe.
Logo no início de seu primeiro mandato, a equipe econômica de Lula fez
um ajuste fiscal mais duro do que o atual. O superávit primário superou os 3%
do PIB nos quatro anos de mandato e foi superior ao do segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso. A taxa Selic foi mantida alta, no patamar de 26%,
até a inflação começar a ceder. As reduções posteriores foram modestas. Os
generosos aumentos reais do salário mínimo só começaram em 2005. Em 2003 e
2004, houve apenas reposição da inflação. O mesmo ocorreu com os salários do funcionalismo
público.
E quais foram os resultados? A inflação caiu a ponto de chegar aos 3% em
2006, abaixo do centro da meta. O dólar chegou a R$2,10 em 2006 e continuou
caindo posteriormente, até chegar a aproximadamente R$1,60 em meados de 2008.
A relação dívida líquida/PIB caiu de 50% quando Lula tomou posse pela
primeira vez para 45% quando Lula foi reeleito, e continuou caindo depois. O
PIB cresceu a uma média anual de 3,5% no primeiro mandato de Lula, média
superior a dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, mas bem inferior à
média dos países emergentes entre 2003 e 2006. No segundo mandato de Lula,
o PIB cresceu a uma média anual de 4,5%. A parcela dos brasileiros vivendo
abaixo da linha de pobreza era de 33% quando Lula tomou posse pela primeira
vez, 25% quando Lula foi reeleito, e continuou caindo. O coeficiente de Gini
passou de 0,59 para 0,55, e continuou caindo posteriormente. A participação da
indústria de transformação no PIB no primeiro mandato de Lula caiu de 17% para
16,5% e continuou caindo depois. As exportações dobraram no primeiro mandato de
Lula. A participação dos manufaturados se manteve constante no primeiro mandato
e passou a cair no segundo.
Como foi dito logo na abertura do texto, a política econômica do
primeiro mandato de Lula poderia ter sido diferente. A queda da taxa Selic
poderia ter sido mais rápida, a valorização real do real poderia ter sido
menor. Se isto tivesse ocorrido, a situação da indústria de
transformação poderia ter sido melhor, e a relação indústria de
transformação / PIB poderia ter subido, ao invés de ter caído. Como a
indústria de transformação difunde aumentos de produtividade para outros
setores da economia, a taxa de crescimento do PIB poderia ter sido maior.
Porém, e este porém é muito importante, para ter reduzido mais a taxa Selic e
para ter evitado uma supervalorização real do real, era necessário ter
feito um superávit primário ainda maior do que o que foi feito, e ter concedido
aumentos menos generosos de salário mínimo e salário do funcionalismo público.
Em poucas palavras: se o governo, em nome do apoio à indústria, resolvesse
abrir mão da política monetária e da política cambial para controlar a
inflação, teria que utilizar de forma mais intensa a política fiscal e a
política salarial para este objetivo. Fazendo isso, o PIB poderia ter
crescido a taxas mais elevadas, mas a queda da desigualdade poderia ter sido
mais lenta, uma vez que o salário mínimo e os gastos com o social, que ficariam
menores, ajudam a reduzir a desigualdade.
Como era de se esperar, esta política macroeconômica foi criticada por
economistas keynesianos desenvolvimentistas não esquerdistas como Bresser
Pereira, José Oreiro, Delfim Netto e José Serra. Eles falaram que a
supervalorização real do real estava provocando a desindustrialização da
economia brasileiro. Defenderam maior superávit primário para evitar a
supervalorização e para poder reduzir mais os juros.
Estranha foi a maneira através da qual esta política macroeconômica foi
criticada pela esquerda. Se é de esquerda, por que defender que a política
macroeconômica deveria ter focado mais o crescimento e menos a redistribuição?
A solução foi fazer de conta que alguns dilemas não existem e propor soluções
não realistas. As críticas pela esquerda também apontaram para a
desindustrialização e para os juros altos, mas ao contrário dos keynesianos
desenvolvimentistas não esquerdistas, os esquerdistas defenderam também um
superávit primário menor, ou seja, mais gastos públicos, e aumentos ainda
maiores de salário mínimo. O que eles fizeram foi basicamente sugerir ligar o
ar condicionado e o aquecedor ao mesmo tempo. Salários maiores neutralizariam o
efeito de um câmbio mais favorável, e a desindustrialização ocorreria de
qualquer maneira. Real desvalorizado, salários crescentes, gastos públicos
elevados e juros baixos produziriam uma tremenda inflação. O que os críticos
esquerdistas da política econômica do primeiro mandato do Lula sugeriram foram
parcialmente aplicados no primeiro mandato da Dilma, e os resultados ficaram
aquém do esperado por eles.
Esta mistura de industrialismo com Estado Social defendida por parte da
esquerda ocorre por causa da influência que o pensamento da Cepal dos anos 1950
ainda exerce. Os cepalinos consideravam que uma melhor distribuição de renda
favoreceria a industrialização da América Latina porque o aumento da população
com poder aquisitivo favoreceria a implantação da grande indústria, que poderia
aproveitar economias de escala. O problema é que o mundo atual não é igual ao
da década de 1950. A inclusão da Ásia no comércio mundial mudou tudo.
Atualmente, para ter manufatura é necessário ter trabalho barato. Alguns
perguntariam: mas e a Alemanha? Lá os trabalhadores recebem bons salários, mas
como a produtividade deles é alta, o custo do trabalho não é alto. E as
indústrias da Alemanha são mais intensivas em tecnologia, e não em trabalho. E
mesmo assim, o que tornou possível a reindustrialização da Alemanha na década
de 2000 foi uma política deliberada de redução de salários.
A escolha de Lula e sua equipe de não priorizar a indústria de
transformação foi acertada? É uma pergunta difícil de responder. A razão
indústria de transformação / PIB, que já foi de 35% no seu auge em 1985,
encontra-se atualmente próxima dos 10%. Perda de participação da indústria de
transformação no PIB é um fenômeno que ocorre em todos os países que se
desenvolvem ao longo do tempo. A curva que mostra a relação entre PIB per
capita e indústria de transformação/PIB tende a ter o formato de uma
montanha. Sobe no início quando a sociedade de torna menos agrícola e mais
industrial e desce posteriormente quando a sociedade se torna menos industrial
e mais voltada para os serviços (sim, eu sei que "serviços" é um
termo muito simplista e amplo, mas não prejudica o argumento). E mesmo o
desenvolvimento não impossibilita que um país seja um grande exportador de
produtos primários. Japão, Alemanha e Coreia do Sul são países muito
desenvolvidos e exportadores de manufaturas. Canadá, Dinamarca, Noruega,
Austrália e Nova Zelândia também são países muitos desenvolvidos e são grandes
exportadores de produtos primários. Se o Brasil um dia for Primeiro Mundo
(será?), provavelmente será mais parecido com Canadá, Dinamarca, Noruega,
Austrália e Nova Zelândia do que com Japão, Alemanha e Coreia do Sul. Por outro
lado, é possível dizer que a desindustrialização relativa (indústria perde
participação no PIB, mas não cai em absoluto), embora normal, foi prematura no
Brasil. O topo da montanha da razão indústria de transformação/PIB foi atingido
em um patamar ainda baixo de PIB per capita, se for feita comparação com o que
ocorreu em outros países. Desde a década de 1990, ainda no tempo dos Fernandos,
quando a economia brasileira foi se tornando menos industrial e mais de
serviços, diferente do que ocorreu em outros países que passaram por este
fenômeno, aqui, os serviços que mais cresceram não foram os típicos de países
mais avançados.
Se era melhor ter sido mais popular ou mais industrialista, difícil
saber. A única certeza que existe é a de que é impossível ser mais popular e
mais industrialista ao mesmo tempo. Conforme dito anteriormente, isto é querer
ligar o ar condicionado e o aquecedor ao mesmo tempo.
Uma política que visasse deliberadamente produzir uma taxa de câmbio
favorável à indústria de transformação seria uma política desenvolvimentista.
Os exemplos mais conhecidos de políticas desenvolvimentistas foram aquelas
praticadas por Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e também pelo Brasil entre 1930
e 1980. Em todos estes exemplos, os governos que praticaram tais
políticas NÃO foram trabalhistas social democratas populares voltados para
o povão.
Como o Brasil teve entre 1930 e 1980 uma política que favoreceu rápida
industrialização, elevadas taxas de crescimento do PIB, mas também elevada
concentração de renda e ganhos mais modestos nos indicadores sociais, e entre
1980 e 2002 houve nem crescimento, nem redução de desigualdade, foi
compreensível o primeiro governo eleito por forças de esquerda depois de 38
anos ter dado prioridade ao social em relação à indústria.
O PSOL fez seu papel de oposição em criticar a política econômica.
Estranho foi o próprio PT ter batido nesta política. Enquanto o PSOL se opunha
ao governo como um todo, o PT era governo e criticava a política econômica,
tratando esta política econômica como parte não integrante do governo, como um
alien. Talvez isso fosse compreensível do ponto de vista político. Se esta
política não tivesse sido bem sucedida, a crítica a esta política serviria como
uma apólice de seguro ao PT. Mas o problema é que esta política foi bem sucedida.
Realmente, o PIB brasileiro cresceu menos em 2006 do que a média dos países
emergentes. Mas é preciso lembrar que Rússia e Venezuela tiveram crescimento
mais alto durante o mesmo período porque estavam saindo de depressão e estavam
sendo beneficiadas por preço do petróleo crescente. A Argentina também estava
saindo de depressão. China e Índia ainda tinham PIB per capita baixo, e é
natural que PIB de países assim cresça mais. Até 2006, achava-se que o PIB
brasileiro tinha crescido menos do que cresceu de fato. Foi descoberto em 2007
que o PIB brasileiro tinha crescido mais, quando o IBGE revisou os dados. A
política econômica do primeiro mandato de Lula permitiu reduzir a inflação de
12% para 3% (até exagerou, se fosse 4,5% já estava bom), o que possibilitou
reduzir os juros posteriormente, fazer o PIB crescer bastante em 2007, 2008 e
2010, aumentar o gasto social e diminuir a miséria. Recusar a autoria de uma
política macroeconômica de seu próprio governo que deu certo foi uma estratégia
burra para o PT. Perdeu a possibilidade de ganhar o lugar de fala como
responsável na gestão das finanças públicas. Mesmo pessoas que gostam do PT por
considerar um partido sensível com o social não confiam no PT como um partido
responsável pela prudência na gestão das finanças públicas. Este lugar de fala
ficou injustamente com o PSDB, mesmo com a gestão nada responsável durante o
primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Mesmo algumas pessoas que
consideram o PSDB elitista acham que o PSDB “tem um lado bom” que seria a
responsabilidade na gestão das finanças públicas. Dizem os peessedebistas mais
lambe saco que no primeiro mandato, Lula seguiu a política macroeconômica do
PSDB. Como se superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação tivessem
propriedade intelectual.
É irônico notar que embora os simpatizantes de Guido Mantega sejam os
mais entusiastas defensores do real desvalorizado, foi durante as duas eras
Joaquim Levy (entre janeiro de 2003 e março de 2006, e a partir de janeiro de
2015) dentro de governo do PT que o real esteve mais desvalorizado. A maior
supervalorização real do real ocorreu durante a era Mantega (entre abril de
2006 e dezembro de 2014), que não por coincidência foi a era em que era pregado
menos rigor na política fiscal.
É injusto, porém, culpar Guido Mantega pela atual crise econômica. Dizer
que a política econômica do Brasil só foi bem conduzida até março de 2006
(alguns chegam a dizer dezembro de 2002) é puro mimimi ideológico. Houve
grandes superávits primários até 2008, a política anticíclica de 2009 foi
necessária e ajudou a diminuir o efeito da crise internacional no Brasil. Não
dá para atribuir apenas ao Pedro Malan e ao Antônio Palocci o mérito pela
conquista do investment grade em 2008. Guido Mantega já estava na cadeira de
ministro há dois anos quando isto ocorreu.
O desarranjo só começou no ano eleitoral de 2010. Ainda havia tempo de
Dilma corrigir isso em 2011. Um ajuste naquele ano poderia ter sido bem menos
doloroso do que em 2015. Ela até ensaiou um ajuste em 2011, mas depois deixou
pra lá. As maiores trapalhadas na condução da política econômica ocorreram
entre o segundo semestre de 2011 e 2014.
Observações
1) Embora eu tenha
criticado neste texto aqueles que defendem a redução dos juros na marretada, e
que durante um determinado momento os juros altos no Brasil foram necessários
sim para reduzir a inflação, eu reconheço que mesmo quando não é necessário,
vai haver lobistas do setor financeiro pregando terror com inflação e
defendendo os juros altos. O Paul Krugman vem mostrando muito bem como isto vem
ocorrendo nos Estados Unidos, em que a taxa básica de juros está próxima de
zero, não há risco de inflação, mas há os lobistas que estão sempre vendo este
risco onde não tem visando elevar os juros.
2) Não usei as palavras ortodoxia
e heterodoxia neste texto. São palavras relacionadas à academia e não à
política, portanto, não cabem na discussão deste texto. Não é visão sobre
política fiscal e monetária que diferencia ortodoxo de heterodoxo. É o jeito de
fazer ciência: ortodoxos são dedutivos, heterodoxos são indutivos.
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